./ Soberania digital e você, ou “Por que você devia convencer seu chefe a mandar o Google tomar no c*”.

Em 2020, o mundo acabou.

O que marca o quarto “fim do mundo” que aconteceu no meu tempo de vida. E tem gente que diz que eu sou cínico como se isso fosse algo ruim. Pelo menos dessa vez algum desastre aconteceu. Os outros três foram um monte de nada. Mas enquanto eu espero o próximo fim do mundo que já está marcado pra ser durante meu tempo de vida (colapso agricultural let’s fucking gooooo-) eu fico pensando sobre os oportunistas que (é claro, como sempre) usaram dessa crise para aumentar seu poder, e se algo pode ser feito sobre.

… Enfim, esse post é sobre a Google Suite e alternativas a ela. Olhe, este blog se chama softresistência — Ligar política e computação é todo o nosso tema. E cedo ou tarde eu vou fazer uma ligação que vai parecer espúria, mas eu prometo que essas duas coisas tem tudo a ver uma com a outra.

-A história-

Em 2020, no auge da pandemia, todo mundo viu-se obrigado a digitalizar sua vida, inclusive e especialmente, gente que nunca tinha pensado nisso. Organizações que cuidavam de tudo localmente e no máximo usavam uns e-mails de-repente precisavam de estruturas. Estruturas para realizar videoconferências, para trabalhar com documentos colaborativamente, enfim, para trabalhar através da rede.

E é claro, a natureza do capitalismo é que onde há uma necessidade, há alguém que está disposto a suprir essa necessidade… Por um preço.

Isso por si não é um crime, tampouco é uma falha do sistema. Isso é o sistema funcionando.

Mas é claro, Silicon Valley é alérgico a honestidade, então eles não podiam só vender ferramentas por um preço e deixar isso ser o fim disso.

O que eles, em especial a Google e a Zoom, para nomear os bois, foi se aproximar de toda organização que estava disposta a escutar, e oferecer os serviços da empresa por um preço bom demais para ser verdade — Porque era, claro — Tal é a estratégia favorita da indústria tecnológica.

Óbvio que agora que coisas acalmaram, mas que todas essas organizações decidiram que, de fato, as ferramentas em questão são úteis demais para viver sem, os preços subiram, os limites ficaram mais apertados.

Mas isso, também, eu considero um pormenor, embora seja sempre bom lembrar o custo financeiro das coisas e o fato de que essas organizações provavelmente estão gastando mais do que precisam, o buraco, como sempre, é mais em baixo.

-Por que isso realmente importa-

Aqui está um fato que é ao mesmo tempo óbvio… E algo que eu sou obrigado a lembrar, porque pessoas estão sempre desesperadas para esquecer:

Zoom, Google, Microsoft, e outras empresas tecnológicas têm dono(s). Estes donos são um conglomerado de bilionários americanos. E há uma quantidade não-insignificante de capital vindouro do governo da China influenciando estas empresas.

Estes donos, neste momento, não têm razão para te foder. Muito. Eles só querem a grana no seu bolso.

Mas isso é por enquanto. E se algum dia eles tiverem uma razão, qualquer que esta seja, se tudo o que você faz passa por eles, eles têm o poder para te foder com total facilidade e sem quebrar nenhuma regra. Você provavelmente concordou em dar a eles o direito de te foder quando concordou com os termos de serviço, termos de serviço estes que normalmente, você não teve escolha em concordar ou não: Precisou aceitar pra continuar trabalhando.

Agora, você pode perguntar em que sentido eles podem te foder. A primeira coisa que você deve levar em conta é informação sensível: Se você ou a organização com a qual você trabalha têm dados hospedados na “”nuvem”” de alguma destas empresas, estes dados não são seus, são deles.

A China tem investimentos significativos em todas as empresas de Silicon Valley, e eu imagino que eu não preciso descrever de novo por que você não devia confiar nos Chineses.

Mas antes que a gente caia na armadilha retórica que os Americanos querem que a gente caia, de pensar que, já que a China é ruim e os EUA estão contra a China, os EUA devem ser bons — Fazem anos que eu venho falando que “o sistema de espionagem da China não foi criado para espionagem governamental, mas para vender propagandas, o governo só foi e comprou os dados que as empresas tinham no servidor”. E que o mesmo não só podia, mas definitivamente acontecia no ocidente.

E mais de uma vez eu ouvi gente dizendo que eu estava sendo estúpido, que a Ditadura Chinesa não tinha comparação com a Iluminada Democracia Americana.

Bem.

Essa notícia foi ao ar na sexta retrasada. A NSA americana admitindo que, de fato, eles compram informações de diversas fontes para espionar em quem eles querem. Agora, a notícia aponta que a NSA está sob pressão do governo. Ela está. Agora. Eu lembro de quando ela esteve sob essa exata pressão dez anos atrás, e no fim das contas nada aconteceu feijoada.

A coisa sobre a sopa-de-letrinhas que são as agências governamentais dos EUA é que a função delas é ter uma quase-carta-branca do governo para agir à margem da lei e completamente fora da ética, tudo em nome de servir os interesses maiores doa império nação. De tempos em tempos eles farejam o bumbum de alguém poderoso e rola um escândalo desses. Dali seis meses é tudo varrido pra de baixo do tapete, porque no fim das contas, eles estão fazendo nada mais que o trabalho deles.

Ao colocar seus dados sensíveis nas mãos de estrangeiros, você se submete aos desejos destes estrangeiros: se você tiver sorte estes estrangeiros serão um grupo corporativo que só escuta pressões do mercado (não que isso seja bom, já é terrível, só é menos ruim que–), ou talvez eles sejam agarrados por um bilionário tecnocrata e se tornem vítima dos caprichos de um filhinho de papai que comprou seu sucesso, e talvez, na pior das hipóteses, responda a um governo estrangeiro que pode, por qualquer razão, decidir te foder.

Eu bati na tecla da organização, organização, organização. Isso porque, como indivíduo, eu acho improvável que qualquer corporação ou governo decida ter um problema com você, e se tiver, você terá problemas maiores que sua “soberania digital”.

Mas considere, no entanto, quantas universidades privadas e públicas agora colocaram toda sua pesquisa e as vidas de seus estudantes na plataforma destas corporações. Considere quantas empresas confiam nessas empresas terceirizadas. Considere, até, que vários órgãos do nosso governo dependem dessas plataformas proprietárias.

Agora imagine que, por exemplo, os Estados Unidos decidem que o Brasil não está dançando conforme a musica, e entre as medidas que eles declaram para nos punir, vem um embargo digital. Todas essas universidades, empresas, e órgãos do governo estão fodidas?

Imagine que uma empresa nacional começa a fazer algo que pode oferecer concorrência à Google ou Microsoft, mas ainda está colocando seus dados no domínio destas. Imagine que uma universidade está ensinando algo que vai contra o que estas corporações querem que seja ensinado. Etc. etc. etc.

Se você se importa com coisas básicas como “liberdade de expressão e informação”, ou “o direito de autodeterminação do povo de um país”, a ideia de que tanta coisa importante está nas mãos de empresas terceiras, e que essas empresas são estrangeiras, devia te deixar com um daqueles nós de nervosismo na garganta.

-Mas tem o que fazer?-

Individualmente? Provavelmente não. A tirinha do xkcd ali em cima coloca um sorriso no meu rosto e eu sempre adoro a sensação de “nós avisamos”. Mas ela também demonstra uma das maiores dores que qualquer adepto do Software Livre é obrigado a passar na vida. No fim das contas cedo ou tarde você vai precisar de interoperabilidade, e se as pessoas com quem você trabalha ainda estão no panóptico, não adianta de nada você estar fora dele.

Pouco adianta você fazer as escolhas mais sábias do mundo a nível individual. Quando um problema é sistêmico, cedo ou tarde, coisas precisam mudar a nível organizacional ou sistêmico.

É claro que eu vou listar aplicações alternativas aqui. A questão é que mesmo que você tenha o conhecimento para organizar sua vida com plataformas de código aberto, você não ganha muita coisa se fizer isso sozinho. E é por isso que eu não irei tutorializar o uso destas ferramentas.

Ao invés disso, o chamado à ação neste post é ver se você tem a capacidade de articular uma mudança a nível organizacional. Seja onde você trabalha, ou se você é estudante em uma universidade. Tentar convencer as autoridades relevantes (e eu sei que isso é mais fácil de falar do que de fazer, mas ei, você erra todos os tiros que você não dispara :P) de que algo vale a pena.

Empresas, universidades, etc. — Em geral tendem a ter pelo menos um “cara da TI”, quando não têm todo um departamento dedicado a isso. E até o mais incompetente dos profissionais de Informática (até eu, que acabei na comunicação depois de inteiramente fracassar na computação!) tem a capacidade de colocar estes sistemas para funcionar localmente e mantê-los, a serviço da empresa ou escola ou o que for onde trabalha.

  • Para substituir o Dropbox ou o Google Drive ou o OneDrive, a alternativa é o NextCloud — No site eles têm planos onde eles hospedam suas coisas no servidor deles, por um preço, mas a ideia sendo evitar isso, eles têm uma opção para montar seu próprio servidor. É essa que nos interessa.
  • Para quem usa o Google Docs/Sheets/Presentations ou o Office Word/Excel/PowerPoint, a alternativa é o NextCloud Office, ele vem junto quando você hospeda o NextCloud e roda no navegador como o Google Suite.
  • Jitsi é a alternativa aos serviços do Zoom e do Google Meet. Igualmente, a ideia seria hospedar coisas no próprio servidor.
  • Adicionalmente, que tal cortar o WhatsApp também? Matrix/Synapse é um serviço de conversas que pode ser hospedado localmente e tem aplicativos para todos os computadores e celulares.
  • No caso das universidades, eu sinceramente fico muito puto porque a plataforma auto-hospedada Moodle para organização de aprendizado a distância existe fazem literais décadas. E a minha universidade inclusive usava ela para alguns cursos. Mas quando rolou a pandemia eles usaram o Moodle que já tinham? Não, usaram motherfucking Google Classroom.

-Tá, mas isso aí não sai caro?-

Essa é a parte interessante: Não, não realmente. Não a médio-longo prazo. Google e sua laia precisam gastar uma fortuna em servidores e em banda porque eles precisam atender bilhões de pessoas. Mas servidores localizados para uma organização só terão de atender algo entre algumas dezenas e poucos milhares de usuários dependendo do porte da organização.

E para um serviço de pequena escala, para algo entre as dezenas e as poucas centenas de pessoas? Seu “servidor” pode ser um notebook usado ou um computador-de-um-chip — Discos rígidos de alta capacidade provavelmente são necessários também. É alguns milhares de reais em investimento? É. O computador que será o servidor custaria um pouco acima de R$ 1.500 (ou menos se alguém doar um computador velho que pode ser aprimorado e usado, um PC mediano de 10 anos atrás é mais que suficiente para ser um servidor se você aumentar a RAM e botar o armazenamento) — O armazenamento necessário depende de quantos funcionários tem e quantos gigabytes de armazenamento cada um teria para si, mas vamos chutar para cima: Dando 50GB para cada usuário, um único HDD de 16TB (Cerca de R$2.000) comportaria pouco mais de 300 usuários. Com o dobro de espaço para metade dos usuários etc. — Não é um investimento pequeno, são mais de 3.000 reais —

— Mas considere que o plano Business Basic do Google, o plano mais simplezinho deles para uso organizacional, custa 28 reais por mês por usuário. Imagine uma pequena empresa com cerca de 50 funcionários — O google suite para essa empresa custaria R$ 16.000 por ano. Se não ficar mais caro ano que vem, que, dado que o preço de 28 por usuário é, por admissão da Google, “preço promocional”, definitivamente vai ficar.

Enquanto o investimento inicial para um servidor local é algo que pode ser feito uma vez, e dificilmente vai acarretar outros custos além de custos de internet (que a organização já estaria pagando de qualquer modo).

Em 2020 o mundo acabou. Oportunistas usaram da crise para aumentar o poder que já tinham. Talvez não seja possível adquirir liberdade total, mas a possibilidade de resistência sempre irá existir.

E às vezes, “resistência”, para ser efetiva, significa convencer alguém que tem mais poder que você, mas que não é diretamente parte do panóptico, que uma ação que é boa para “a plebe”, é boa para eles também.


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