#! “Loss Leaders”: Como o mundo da tecnologia foi completamente conquistado por empresas no vermelho

@Softresistencia

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Deixe-me lhe propor um cenário hipotético: Um novo serviço chega ao mercado, ele faz algo que é útil e valioso para todos, algo que ou não existia antes, ou que existia mas era mais caro e menos prático. Todo mundo começa a usar deste serviço. Se havia um equivalente dele no mercado anteriormente, ele começa a lentamente sumir, superado como foi por esta nova coisa.

… E então ele começa a ficar pior. O preço sobe, claro, se há um preço. Se era de graça, talvez passe a ter um preço. Mas o serviço em si fica mais lento, menos prático. Quando você vai tentar fazer uso deste serviço que era extremamente conveniente, descobre que agora há meia dúzia de obstáculos que antes não existiam, e eles não tornam o serviço completamente inútil, mas te irritam toda vez que você interage com ele. Você até chega a sentir saudades dos velhos tempos, mas estes velhos tempos não podem mais voltar.

Este cenário hipotético nada tem de hipotético: Ele é o que aconteceu com tantos serviços dos quais nós dependemos em nosso dia-a-dia.

Uber, quando chegou, era mais barato, mais fácil, mais rápido, e usualmente mais confortável que Táxi (… E pagava o motorista bem menos, claro.) Taxistas tentaram lutar contra a conquista do Uber, persistir, mas no fim das contas esta sempre seria uma batalha que eles estavam fadados a perder, e de fato, perderam. Taxistas ainda existem, claro, mas hoje em dia um Táxi é o plano B quando o motorista de aplicativo não aparece.

… E enquanto isso, Uber foi ficando pior. O preço subiu, e o pagamento dos motoristas não. Os padrões para que tipo de carro podia prestar serviços para a Uber foram abaixados. E o aplicativo em si foi ficando cada vez mais inconveniente, hoje te bombardeando com meia dúzia de tentativas de venda casada toda vez que você tenta comprar alguma coisa.

Netflix, quando entrou na jogada, era a morte da TV a Cabo e da Vídeo Locadora. Um catálogo gigantesco que só fazia crescer de filmes, animações, e seriados, acessíveis direto do celular ou televisor, sem precisar sair de casa duas vezes pra buscar e devolver o filme, sem precisar ver a grade de programação e rezar para a coisa que você queria estar no ar num horário que você podia ver, e todo mês, novos e promissores projetos indo ao ar na plataforma. Além do fato de que a empresa parecia não ligar (e até incentivar, em suas plataformas de mídia social) que famílias e grupos de amigos rachassem uma conta para quatro ou cinco pessoas, economizando uma grana gorda para todos os envolvidos.

Agora, não apenas o preço subiu, não apenas a empresa tem feito esforços para dificultar e impedir a “conta rachada” — Mas muito menos conteúdo é financiado. E enquanto isso metade dos estúdios que um dia tiveram seus filmes na plataforma da Netflix pularam fora para abrir seu próprio streaming. De uma plataforma barata e todo o seu conteúdo em um único lugar, para meia dúzia de serviços separados, menos baratos, em aplicativos separados.

Esse processo, chamado pelos anglófonos de “Enshittification” (Lit. “Merdificação”), é observado em toda “plataforma” nascida em Silicon Valley. Facebook, Instagram, YouTube, Twitter(/X/Xitter), Netflix, Amazon, e tantas outras que eu ficaria aqui o dia inteiro se quisesse nomeá-las. E nada disso é coincidência, é o produto inevitável de uma estratégia que é mais velha que a indústria tecnológica, a estratégia do Loss Leader.

Em resumo, Loss Leadership envolve uma empresa, com bolsos cheios de grana, seja de um projeto anterior, ou de investimentos de Venture Capital, lançar um produto que calculadamente vai dar (muito) prejuízo, assim permitindo que o produto seja mais barato e conveniente que a concorrência. Concorrência esta que não tem bolsos tão fundos, e portanto, não pode brincar de abaixar os preços ou adicionar vantagens à mais sem ir à falência.

O propósito de criar um Loss Leader é exatamente aguentar até que todos os concorrentes tenham ido à falência. Até que “todo mundo” esteja usando seu produto ou serviço e ele seja sinônimo da coisa que ele faz.

Considere que não só todos os concorrentes do YouTube (Blip.TV, Vimeo, Yahoo Video, etc.) estão ou mortos ou capengando, mas que “YouTube” virou toda uma categoria. “YouTuber” é uma profissão, não “artista independente de streaming”, “YouTuber”. Imagine viver em um mundo onde só existem televisores Samsung, e toda personalidade da TV é chamada de “Samsunger”.

Quando não existe mais uma concorrência capaz de enfrentar seu Loss Leader, a empresa começa com os cortes. Vantagens são reduzidas, conveniências são removidas, preços sobem. Uma vez que não há mais para onde fugir, pessoas são obrigadas a aceitar qualquer negócio, e é claro que o negócio vai ser um que abusa o consumidor: Ele não tem opção, e a empresa precisa ganhar de volta o dinheiro que perdeu em ser o Loss Leader.

Essa estratégia continua a ser realizada porque ela funciona. Mas a face dela no passado era diferente: Nos anos 80 Nintendo vendia seus consoles a prejuízo para tirar lucro nos preços elevados de cada jogo. Até hoje HP e outras vendem impressoras a prejuízo para lucrar em cima dos cartuchos de tinta. Em geral era fácil farejar um Loss Leader pelas vendas secundárias. Hoje isso é mais difícil, mas em geral qualquer serviço que parece bom demais para ser verdade… É. E não vai continuar bom por muito tempo.

Claro, eu digo tudo isso levando em conta serviços que são organizados por organizações capitalistas, que cedo ou tarde terão fins lucrativos. Quando eu insisto em projetos comunitários e em afastar-se de Silicon Valley quando possível, eu não falo porque eu odeio conveniência — É porque eu conheço o padrão que são Loss Leaders, e sei que a conveniência e Silicon Valley é um pacto com Mammon. E como todo pacto Faustiano, cedo ou tarde, a entidade vem cobrar sua alma.


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