./A perdição eterna: Doom e o poder duradouro de um projeto comunitário

O legal deste blog existir é que ocasionalmente eu tenho uma desculpa para só. Falar sobre algo que me interessa. E hoje, começo do ano de 2024, com o recesso de fim de ano acabando, eu tenho a desculpa para falar sobre uma das minhas coisas favoritas. Não só no território de video games, mas em geral: Doom.

(Toque isso para entrar na vibe)

Protagonista de Doom com seu coelho de estimação. Arte por tayvic.

Claro, a série Doom continua até hoje, sob o controle de mestres corporativos (com muita grana trocando de mãos, acabou sob o controle da Bethesda Softworks, subsidiária da Microsoft, famosa pela série Elder Scrolls de RPGs) — Mas não é deste Doom que eu quero falar. O game de 2016 é excelente, Doom Eternal nem tanto, mas é um game “normal”. Um produto que você compra, que tem começo meio e fim, e ao terminar, ele acaba.

Ao invés disso, eu quero lhes contar uma história que vai começar lá atrás, mas vai nos trazer de volta para o presente por um caminho que muita gente não percorreu.

Nossa cena se abre em 1994. 30 anos atrás. (Vê? Eu não escolhi falar de Doom só porque acho legal!) Doom, do ano anterior, havia sido um grande sucesso apesar de seu modelo comercial estranho, sendo vendido apenas por encomenda telefônica, mas com uma demonstração gratuita distribuída em clubes de computador pelos EUA e Europa. A equipe responsável, do “estúdio” Id Software (que consistia de meia dúzia de nerds metaleiros morando & trabalhando em um casebre próximo a uma lagoa no Texas) correu para desenvolver Doom 2: Hell on Earth. Uma sequência que era, na verdade, um pacote de fases para o mesmo jogo, com a mesma jogatina, rodando na mesma engine. Esta sequência direcionada à venda por canais tradicionais. Ou seja, diferente de seu antecessor, seria encontrada em caixas em lojas de computador e etc.

Doom 2 colocou Doom e a Id Software no mapa, o jogo original eventualmente receberia uma edição para venda em lojas, e seria vendido junto à sua sequência-expansão.

E é aqui, em meio a este sucesso comercial todo, que nossa história realmente toma forma, e eu lhes apresento nosso único personagem nomeado… Que apesar disso não é nosso protagonista.

O jovem à direita, com a espada. Este é John Carmack. Junto com seu parceiro-de-crimes John Romero (à esquerda, com o machado), eles formavam a cabeça deste pequeno estúdio Texano. Romero era o artista: Ele criava fases e escrevia historinhas para os jogos da dupla que virou equipe.

Carmack? Carmack era o gênio da programação. O homem que sonhava com polígonos em movimento e encontrava a equação que precisava pra fazer seu jogo rodar mais rápido através deste sonho.

Em comum os dois tinham o fato de que haviam se criado na cultura hacker das universidades americanas dos anos 80. O mesmo lugar de onde Richard Stallman (criador do projeto GNU e ‘filósofo’ de todo o software livre) saiu.

Pois bem, Carmack havia mudado o mundo dos video games ao fazer uma máquina com um processador de 20 Megahertz (seu celular hoje tem entre quatro e sete processadores rodando a 4.000x esta velocidade, pra não falar do seu PC), e 4 Megabytes de RAM (seu celular hoje tem pelo menos 1.000x isso), não só mostrar um mundo tridimensional para o jogador, mas um mundo tridimensional que era fácil e divertido de explorar, e cheio de monstros ferozes para combater. Uma prova da habilidade de um homem cujo talento como programador só se vê uma vez por geração.

Mas hacker e gênio que era, Carmack obviamente não queria parar por aí. Novos computadores mais poderosos estavam chegando ao mercado. Processadores Pentium com seus exorbitantes 100 Megahertz. Placas geradoras de vídeo dedicadas. E vendo essas novas tecnologias, Carmack já estava pronto para novamente revolucionar o mundo dos video games com seu novo projeto Quake.

Bem, alguns anos se passaram. Quake saiu e foi tão revolucionário quanto Carmack esperava. Mas o importante para nossa história é que, com Quake sendo o novo jogo do momento, Doom era “notícia velha”. Podia ter sido mais um jogo que começa, acaba, e fica na memória dos jogadores.

Mas Carmack não era um businessman. Ele era um hacker. Um businessman teria se sentado em cima da tecnologia desenvolvida para Doom e largado ela lá até ver alguma oportunidade de transformar ela em dinheiro de novo. Carmack, por sua vez, pegou o código fonte por trás de Doom, com toda a sua tecnologia antes-revolucionária, e em 1998 a colocou na rede, sob domínio Copyleft para quem quisesse criar seus próprios projetos em cima.

Eu disse que Carmack não era nosso protagonista apesar de ser o único personagem nomeado, e é porque foi neste momento que Doom caiu no colo de nossos verdadeiros protagonistas: Não um ou outro indivíduo, mas centenas, milhares de membros da comunidade. Gente que só seria conhecida por seu pseudônimo digital.

Talvez Carmack soubesse que esse seria o efeito de sua decisão lá em 98. Talvez não. (Francamente, Carmack é basicamente um ET, e é impossível saber o que ele pensa — Mas Romero até hoje mantém boas relações com a comunidade.) — Mas o que acabou acontecendo é que, nas mãos do domínio público, Doom ganhou uma segunda vida. Uma que nunca realmente acabou.

No post que Carmack redigiu ao publicar o código fonte ele sugeriu “faça algum projeto legal com ele, por exemplo, converter o jogo pra rodar no Linux” — Claro, isso aconteceu. Bem como conversões para praticamente todo dispositivo que tivesse uma tela e alguma forma de interação com o usuário. Começa com conversões caseiras para outros computadores e com consoles de video game. Mas que tal equipamento de laboratório? Máquinas de Caixa Eletrônico? Que tal um teste de gravidez?

Mas conversões do jogo original para aparelhos inusitados são a ponta da ponta do iceberg. Desde que o código fonte de Doom foi liberado ao domínio público, a comunidade usou dele para desenvolver outros motores de jogo que expandem e muito as capacidades do original.

Originalmente era necessário ter uma cópia do Doom original para executar qualquer coisa construída sobre o código fonte (materiais como arte de jogo e sons e etc. não estavam no código fonte, só no disquete do jogo original) — Mas isso, também, a comunidade resolveu.

E com isso, temos os mods, as conversões totais, e até mesmo jogos originais. Mods são parte da experiência de todo jogo de PC. Assim que um jogo existe, pessoas começam a fazer modificações para ele. A plataforma do computador possibilita isso. E o Doom original não é exceção. Já em 94 haviam mods para ele.

Mas com as expansões feitas pela comunidade, “mod de doom” deixou de ser uma alteração para um jogo existente… E tornou-se seu próprio sub-gênero de vídeo-game. Até hoje a engine é usada para jogos inteiramente originais com temáticas diferentes, para pacotes de fases feitos comunitariamente, para releituras do jogo mais agressivas e desafiadoras, e até mesmo para experimentos artísticos que usam a linguagem visual e ludonarrativa de Doom para criar uma história de terror psicológico sem igual. Ano após ano, o evento comunitário Cacowards contempla as ideias mais criativas ou divertidas a saírem da comunidade.

… Mas então. Depois de falar um monte sobre um video game antigo e os fãs esquisitões dele, qual era meu ponto com este post? E por que ele está em um blog sobre software livre, e ainda taggado como sendo um ‘software em destaque’?

Bem… Em primeiro lugar eu queria demonstrar o poder e flexibilidade que existe em ser algo da comunidade para a comunidade. Sob o comando de uma empresa com fins lucrativos, Doom jamais teria sido alvo de toda a experimentação e invenção que ocorrem todo ano nos braços da comunidade.

Mas mais que isso, em geral blogs sobre software livre são focados ou na programação em si (não sou programador, não tenho o talento para tal) — Ou, pior ainda, em substituições.

Em brincar de Bela Gil e passar horas sugerindo trocar arrozphotoshop por linhaçaGIMP. Não que tenha algo errado com GIMP (ou linhaça), ele é meu editor de imagens de escolha, e pretendo falar dele no futuro próximo (esperando sair o Gimp 3.0 pra blogar sobre, já que ele vai apresentar todo tipo de melhoria muito desejada) — Mas isso nunca não vai passar a imagem do software livre como uma “alternativa”, uma “opção”. O “plano B” pra quem não pode ou não quer pagar pela “opção de verdade”, tal como a linhaça é o “plano B” pra quem precisa muito emagrecer.

Eu queria lhes mostrar hoje algo que não só não é uma “alternativa” a uma outra coisa que é corporativa. Algo que existe como sua própria coisa… Mas que também poderia existir através de criação comunitária. O modelo coletivista de inovações compartilhadas da comunidade de Doom, onde tudo que é feito é de posse da comunidade toda para servir de base para mais invenções é algo único. Algo que jamais poderia existir sob o paradigma do direito autoral.

O último jogo com o nome “Doom” desenvolvido pelo atual mestre corporativo da propriedade intelectual, ironicamente chamado “Doom Eternal” saiu quatro anos atrás. Pessoas jogaram. Terminaram. Foram jogar outra coisa. Quem curtiu, curtiu. Quem não curtiu, problema. E nenhum pio veio da Bethesda sobre continuar a série.

Doom Eternal veio, foi, e acabou. Mas Doom? Tal como o Doomguy, para sempre metralhando as almas penadas do inferno em vingança por seu coelho de estimação, Doom é a Perdição Eterna.


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