No começo dos anos 90, meu pai, que na época já era gamer de PC, trouxe para casa nosso primeiro Kit Multimídia.
Isso é o tipo de lembrança que você tem que ser velho para ter. De fato, eu não lembro do evento em si, só lembro dele me contar mais tarde.
Acontece que houve um tempo em que computadores não tinham a capacidade de tocar sons e música por padrão. Era preciso comprar uma placa que conectava-se à placa mãe, tal como gamers hoje compram placas aceleradoras de vídeo.
Placas de som, hoje um item de luxo para músicos e audiófilos, eram a única forma de ter som em um computador além de alguns bipes. E um “Kit Multimídia” era um pacote que você comprava da loja de informática, que incluía uma placa de som, um par de alto-falantes, e mais tarde, um leitor de CDs também.
-Sumário-
- -Minha história com mídia abandonada-
- -Mídia perdida-
- -“Perdendo” de propósito-
- -Quando a preservação é “impossível”: As mídias que renasceram das cinzas-
Como um kit multimídia era um investimento significativo para um gamer de PC, e a internet ainda estava longe de emplacar — Também era costumeiro vir alguns CDs com programas e jogos pra você brincar junto do kit. Normalmente era o que quer que estivesse encalhado no estoque. Fosse do fabricante do kit multimídia ou da loja que estivesse te vendendo.
-Minha história com mídia abandonada-
Ponto sendo, nesse kit multimídia, nessa época, veio um CD com um título chamado A Turma da Cozinha.
Outra coisa que só existiu por aquele brevíssimo momento entre 1995 e 2003, em que computadores estavam ficando melhores, mas nem todo mundo tinha internet e quem tinha, era uma rede discada caríssima e lenta.
Não exatamente um jogo, o CD-ROM multimídia era um software experimental misturando texto, vídeos, musica, pequenos joguinhos e elementos interativos. O tipo de coisa que mais tarde se esperaria ver na web. A maioria (mas não todos! Enciclopédia Microsoft Encarta manda um ‘hello’. A Coleção Completa Super-Interessante manda um ‘oi’) era, tal como A Turma da Cozinha, uma coleção de atividades e historinhas para crianças. Haviam CD-ROMs temáticos da Disney, de super-heróis como o Homem Aranha (isso em uma época em que essas duas coisas não eram cabeças da mesma hidra!), etc.
Mas por que raios eu estou falando de um CD de centro de atividades para crianças do final dos anos 90? Bem. Turma da Cozinha pode ser formalmente considerado “mídia abandonada” hoje em dia: Obviamente ninguém mais faz cópias do CD (computadores modernos sequer têm leitores para discos óticos), ou seja, os que foram prensados lá nos anos 90 são os únicos que existem. Não está a venda em nenhuma plataforma moderna, claro. E aliás, ao que tudo indica, a empresa responsável, a Trattoria DiFrame, uma empresa de animação brasileira que fez vários comerciais e tal depois da Turma da Cozinha, sequer existe mais. Em uma pesquisa na Internet, a única evidência que eu achei de que a empresa um dia existiu foi uma página do Facebook que não é atualizada desde 2013, e um site da justiça brasileira listando processos que citavam a empresa.
Além disso — Nenhum computador moderno é capaz de executar o software em questão. Desenvolvido como ele foi para computadores equipados com Windows 3.11, cuja compatibilidade em sistemas Windows modernos é quase nula.
Um projeto pessoal que eu tenho (que ainda não materializou porque TDAH é uma putinha) seria de pegar este CD-ROM multimídia, copiar as artes e etc. usando um emulador, e então tentar restaurá-lo de forma que seja executável em um computador moderno.
-Mídia perdida-
E você pode estar se perguntando, isso importa? Afinal, era um brinquedinho digital do fim dos anos 90. Quem liga?
Bem. Fora minha nostalgia vazia — Turma da Cozinha foi o primeiro CD-ROM interativo feito no Brasil. E só por isso pode ser considerado como tendo um valor histórico.
Estima-se que 90% da história pioneira do cinema seja mídia perdida. Filmes que só – Não existem mais. Todas as impressões deles tendo sido perdidas de uma forma ou outra ao longo dos anos. Filmes que só sabemos que existem de formas indiretas: As lembranças de quem estava lá e viu. Os documentos provando o movimento de dinheiro para fazer tais filmes acontecerem. Talvez algumas fotos tiradas no estúdio.
E que fique claro que entre estes filmes, dificilmente há alguma obra prima, o cinema mudo sendo a coisa primitiva e “básica” que era na época. Mas não importa: É parte da história da sétima arte, e portanto, parte da história da humanidade, que jamais será vista.
A história da computação e dos vídeo games, por enquanto, é extremamente privilegiada: Há pouquíssima mídia verdadeiramente perdida quando tratam-se das novas mídias digitais, o que temos de sobra é mídia abandonada, falarei disso um pouco mais adiante.
Parte disso deve-se à própria natureza da mídia digital: Mídias analógicas degradam-se naturalmente com tempo e uso. Uma fita VHS vai ficar “pior” só de ser assistida repetidamente. Um filme de 35mm vai lentamente perder o contraste até sobrar nada. Um disco de vinil vai perder fidelidade com exposição à poeira e outras impurezas. Além disso, embora seja possível copiar o conteúdo da mídia antes dela terminar de degradar-se, é impossível criar uma cópia perfeita de uma mídia analógica, e conforme cópias-de-cópias-de-cópias vão sendo feitas, mais e mais detalhe é perdido até isso se tornar perceptível, e, eventualmente, não sobrar nada.
A mídia digital é infinitamente copiável, cópias dela são sempre perfeitas, não degradam com uso, e excluindo a extrema improbabilidade estatística de dano físico ou lógico a todos os dispositivos contendo cópias de algum material em forma digital, é improvável o desaparecimento espontâneo de qualquer coisa que existe de forma digital.
… Mas eu disse desaparecimento espontâneo. E se você está apostando que eu estou prestes a mergulhar em uma discussão sobre como megacorporações de mídia e tecnologia vem fazendo todos os esforços possíveis para garantir o desaparecimento deliberado de anos de história de mídia… Bem, você esteve prestando atenção no resto deste blog. Meus parabéns, champz. 😛
-“Perdendo” de propósito-
Aqui está a coisa: Megacorporações não gostam de nada que eles não podem transformar em dinheiro. E você pode estar pensando, corretamente, que o acervo de mídias do passado deles não só pode ser transformado em dinheiro, mas requer quase nenhum investimento deles para tal.
… E isso é verdade até certo ponto. Veja bem, há um limite matemático de quantas vezes eles podem vender o mesmo filme para as mesmas pessoas. Ninguém vai comprar outro DVD/Blu-Ray de um filme que já tem, e agora até a mídia física está sumindo, cada vez mais estamos migrando para a mídia digital, que é ao mesmo tempo mais permanente e mais efêmera.
Nessa semana passada a empresa Funimation, que dublava animes para a língua inglesa e disponibilizava animes dublados e legendados em streaming para habitantes da anglosfera anunciou que estaria fechando seu serviço de streaming e fundindo-se à gigante do streaming de mídia japonesa Crunchyroll. O problema aqui é que o serviço da Funimation não funcionava como um Netflix. Ao invés disso, você comprava acesso a títulos específicos, tal como comprar um DVD da série, e tinha acesso a este anime “para sempre”.
Bem, “para sempre” acabou sendo “uns 15 anos”, porque com o fechamento do serviço da Funimation, milhares de fãs americanos de Anime descobriram que perderiam acesso a toda a sua biblioteca de desenhos japoneses… A não ser que assinassem o serviço da Crunchyroll, que não-coincidentemente vai ficar mais caro quando a fusão for concluída, e sendo que não há garantia nenhuma de que os títulos que eles haviam adquirido estarão no serviço da outra empresa.
Desde que a notícia saiu, alguns fãs descobriram uma forma de extrair os vídeos dos animes (comprados legalmente) do servidor da Funimation. Pequeno problema? Este ato de preservação, de querer continuar podendo assistir as séries animadas pelas quais eles pagaram?
É, ele é um crime na maioria dos países.
XKCD tem uma tirinha para tudo.
Isso mesmo. Baixar os vídeos, pelos quais eles pagaram, e que eles tinham o direito de assistir até algumas semanas atrás, é um crime na maior parte dos países.
Em muitos casos, a única razão que certas mídias são preservadas — São piratas. Criminosos. Bandidos. — Porque se depender das corporações que produzem essas mídias, a partir do momento em que elas não são mais “novas” e a margem de lucro diminui… Não tem valor nenhum em mantê-las vivas.
Mas aparentemente, existe valor em tentar destruí-las.
Temos o privilégio de viver no Brasil (eu não vou falar disso nesse blog, foge do assunto, mas toda vez que eu vejo o que está rolando nos EUA, eu amo o Brasil um pouco mais. E tipo, amar de verdade, não o que certos ‘patriotas’ fazem que é querer transformar o Brasil num EUA pobre pra amar os EUA pobres) onde o braço das megacorporações é menos forte, menos invasivo. Mas ativamente conglomerados como Disney e Nintendo lutam contra aqueles que tentam preservar mídias, mídias que muitas vezes elas próprias abandonaram, que não podem ser legalmente compradas ou alugadas em lugar nenhum.
O Internet Archive, um belíssimo acervo do legado digital da humanidade, está, desde quando foi ao ar, sob ataque de conglomerados midiáticos para quem preservação é o mesmo que roubo. Se há um chamado a ação neste post, aqui está ele: Se você tem money no bolso? Considere doar uns 20 reais para o Archive. Ou céus, para a Wikipédia. O serviço que estas pessoas fazem pela — Humanidade como um todo — É de valor inestimável.
E há gente poderosa querendo destruí-los. E enquanto não estamos COMPLETAMENTE na distopia cyberpunk, a batalha é jurídica e não com armas. E advogado é caro. (bem, mercenários cyberpunk seriam ainda mais caros, mas você entendeu!) Então.
Infelizmente o Archive é gringo então a doação tem que ser com paypal e cartão internacional. Ou criptomoeda, se você ainda está botando fé naquela loteria.
-Quando a preservação é “impossível”: As mídias que renasceram das cinzas-
Mas tem mais uma coisa a ser citada nesse post. (Na verdade, inicialmente o post ia ser só sobre essa coisa mas aí, daí…) Se posso falar que este blog tem temas centrais recorrentes, estes temas são: 1. Corporações são horríveis; e 2. Projetos Comunitários são foda.
Às vezes, preservar uma mídia não é possível. Ou não é imediatamente prático.
O seriado britânico Doctor Who foi produzido pela BBC desde o começo dos anos 70. Nos anos 70 e até metade dos anos 80, até gravar algo em Videotape era um luxo. Como resultado — Muitos episódios do seriado foram gravados uma vez para distribuir a gravação “mestre” para as emissoras, e então o rolo de fita foi imediatamente apagado e reutilizado.
Ao longo dos anos, as fitas-cópia que diversas emissoras por toda a anglosfera tinham foram degradando. Algumas sobreviveram, e é claro, quando o Vídeo Cassete caseiro apareceu na cena no meio dos anos 80, pessoas começaram a gravar tais episódios em seus VHSes também.
Mas ainda assim, muitos episódios se perderam: Não existe nenhuma cópia completa deles. Então, o que um fã de Doctor Who faria para preservar sua série favorita?
Por sorte, a BBC é uma empresa estatal, e como tal, extremamente burocrática. Então embora não houvessem mais fitas com os episódios completos — Havia os roteiros e storyboards originais, todos preservados em acervo como documento oficial. Havia pedaços de episódios, ainda em fitas de emissoras e indivíduos, ainda em uma condição boa o suficiente para serem vistos, senão completos ou perfeitos. Havia fotos tiradas no set, e estas fotos eram a cores mesmo o seriado sendo em preto-e-branco. E havia gravações de áudio, já que fitas de áudio eram muito mais baratas que as de vídeo.
Então por anos e anos, vários grupos de fãs de Doctor Who se juntaram em momentos diferentes, para reconstituir estes episódios perdidos. Usando de quaisquer fontes que tivessem, e falhando isso, até mesmo redublando ou desenhando cenas que faltavam com base no roteiro ou no storyboard.
Em uma outra fandom, também relacionada com um clássico de Ficção Científica, fãs de Star Wars, perturbados com o fato de que era impossível adquirir uma cópia dos filmes tais como eles eram em sua iteração original dos anos 70~80 em uma qualidade superior a “VHS surrado”, e desgostando das alterações feitas pelas chamadas “edições especiais”, fizeram um esforço genuinamente hercúleo para “desespecializar” a trilogia original, misturando imagens capturadas de cópias em filme que haviam sido guardadas por cinemas, pedaços das versões modernas que não tinham sido alterados, pedaços das versões em VHS e LaserDisc, etc.
Em video-games, como citado lá atrás, não há tanta mídia perdida. Mas ainda há algumas coisas que eu preciso discutir.
Link: The Faces of Evil e Zelda: Wand of Gamelon são dois jogos lançados em 1993 pela Philips Interactive Media, usando personagens da série Legend of Zelda, da Nintendo. Estes games são famosos, ou talvez melhor dizendo, infames, por terem cutscenes animadas horrendas, e por em geral serem jogos ruins.
Mas a ligação deles com uma série que é, por muitos, considerada “o Senhor dos Anéis dos Video Games”, o grande clássico dos games de RPG de ação e fantasia, é claro, deixa pessoas curiosas. Curiosas o suficiente para quererem experimentar estes jogos decididamente ruins mas indiscutivelmente interessantes.
E conseguir uma iso do disco original dos jogos é até fácil. O problema é que os games em questão foram desenvolvidos para um “console” que é raríssimo, o Philips CD-i. E para o qual existem pouquíssimos jogos (a maior parte dos títulos no CD-i, de fato, eram CD-ROMs multimídia, não jogos. É como poesia, rima.) — Como tal, não há muito no quesito emulação para a máquina. E dificilmente alguém irá gastar milhares em um console original para jogar dois jogos que, como já informamos, todos sabemos que nem bons são.
O que fazer? Bem, se você é um grupo de pessoas insanas e brilhantes, recriar os dois títulos inteiros no PC, usando de uma coleção de capturas de tela e vídeos que se espalharam na internet ao longo dos anos como memes. E no processo, por que não? Reimaginar certos aspectos dos jogos, de modo a torná-los menos ruins que os infames originais.
Não? Recriar dois jogos raros mas famosos por serem ruins não é suficiente?
Que tal um video game que usava um sistema para ter seu jogo sincronizado com uma transmissão de rádio, com o jogo reagindo à transmissão resultando em uma experiência de jogatina completamente inusitada?
Tal era a proposta do BS-X Satellaview, um acessório para o Super Famicom, o Super Nintendo japonês, que usava das transmissões de rádio por satélite da empresa St.GIGA não apenas para baixar jogos e conteúdos multimídia de uma banda de transmissão especial (como uma proto-internet. Existiram VÁRIAS proto-internets entre as primeiras redes de computador nos anos 60 e a Web moderna em 1994, talvez eu venha a falar delas no futuro), mas que foi lar de alguns “jogos-evento”, que foram ao ar em noites especiais no Japão, e nas quais milhares de jogadores que tinham o serviço podiam participar de uma experiência simultânea com um game que tinha uma trilha sonora em altíssima qualidade para a época e que reagia a estas trilhas em tempo real.
Claro, por sua própria natureza, estes jogos eventos são efêmeros. Mesmo que o código de programa fosse preservado (e em alguns casos, foi!), metade da experiência estava nas transmissões de rádio. E estas tinham tempo para acontecer. Foram ao ar por 2 horas em dias de sábado por um mês para cada jogo (dos quais houveram uma dúzia e um chorinho). Foram reprisadas algumas vezes entre 93 e 96. Mas acabou. Não tinha como não acabar.
Bem… Há um destes jogos evento, F-Zero Grand Prix — Que passou por um processo fascinante.
Veja bem, algumas pessoas absolutamente insanas encontraram uma gravação em VHS de F-Zero Grand Prix sendo jogado nos anos 90 durante uma das transmissões de rádio originais. Esta gravação, claro, caiu na rede.
E usando dos vídeos, do áudio da transmissão que foi preservado nessa fita, e do conhecimento de jogos anteriores e posteriores na mesma série, um grupo de fãs propôs-se a refazer este game perdido, de modo que qualquer jogador na internet pode experimentá-lo.
Um jogo que havia sido inteiramente perdido. Cuja efemeridade era inegável. Completamente restaurado por uma comunidade de fãs dedicados. Eu nunca liguei para F-Zero, mas céus se isso não é a coisa mais legal do mundo. E você pode só — Pegar este jogo um dia perdido na internet, nesse exato momento!
… Por enquanto. Se você tem qualquer interesse, vá procurá-lo e pegá-lo antes que a Nintendo descubra! Você SABE como eles são.
Com agradecimentos e xingamentos à minha amiga Rosa por me contar sobre F-Zero Grand Prix e em geral me mandar pra dentro do buraco-do-coelho-branco que inspirou este post.
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